Perguntas FOLCLÓRICAS
Dúvidas sobre o significado de “folclore” surgem a todo momento no grande reino do caos que chamamos de redes sociais, mas esse fenômeno é só um sintoma de problemas mais complexos sobre o entendimento sobre quem somos nós nesse imenso caldeirão cultural que vivemos. Neste espaço, tentaremos responder alguns questionamentos “polêmicos” que fomentam muitos equívocos na internet.
NÃO SERIA MELHOR FALAR SÓ “CULTURA” AO INVÉS DE “FOLCLORE”?
A palavra vem do inglês (Folklore) e foi criada pelo arqueólogo britânico William Thoms para dar nome as pesquisas específicas sobre a sabedoria popular, e aqui entram as festas, cantigas, superstições, costumes, mitos, lendas. Podemos pensar na CULTURA como o conjunto de conhecimentos de um grupo social, contudo, indo um pouco mais afundo percebemos suas complexidades.
Uma cultura pode se manifestar em algumas modalidades como a denominada erudita, vinda de organizações intelectuais (escolas, universidades, templos religiosos…), a cultura de massas (recebida através das redes online, de mercado e grandes empresas) e a espontânea, aprendida de maneira informal através da nossa vivência desde o nascimento (gestos, sentimentos, gírias, comportamento…). Ah, e todos esses modos coexistem no que chamamos de cultura brasileira.
O folclore é uma ciência sociocultural que estuda justamente a parte da cultura espontânea nascida dos diferentes modos de ser de um povo e preservados pela tradição.
Sem contar que ressignificar o que não entende ou deixar de usar uma palavra por entendê-la como problemática não faz com que nenhum problema seja resolvido, né?
O FOLCLORE NÃO É FEITO SÓ DE CULTURA INDÍGENA?
No Brasil, o termo foi popularizado nas escolas através da literatura infantil e nela muitos dos personagens tem origem em culturas indígenas e que, através oralidade, ganharam outras versões no âmbito popular como Boto, Iara, Curupira e Caipora. O Saci, além de ser o personagem mais famoso, é um ótimo exemplo de como essas influências podem trazer elementos de culturas diferentes para formar algo novo.
O nome SACI PERERÊ é uma derivação de um mito do povo guarani chamado Yasy Yaterê, o gorro é herança do gnomo do folclore português, a pele negra e a perna possuem um elo africano com o orixá Ossaim, que também tem uma só perna. Além dos elementos presentes em todas essas culturas como o cachimbo.
Sabemos que existem muitas expressões cristãs e europeias, devido aos impactos da colonização, que transparecem em personagens como mula-sem-cabeça, lobisomem, cuca, corpo-seco ou Negrinho do Pastoreio e em festas como junina, carnaval, folia de reis ou cavalhada.
FOLCLORE NÃO É SÓ DO NORTE/NORDESTE?
O folclore pode ser percebido em todo lugar que houver um grupamento social e o que muda é como percebemos ou tratamos dessa temática, ou simplesmente entendemos a palavra, em cada região.
Na nossa sociedade costumamos a colocar a cultura popular (ou folclore) como uma forma de conhecimento menor ou atrasado, mesmo equívoco que ocorre com regiões do interior, fora do eixo sudestino ou periféricas do país. Todo tipo de expressão cultural pode existir, seja em pequenas ou grandes cidades. As lendas urbanas, festas, ritos, superstições… tudo isso está ao seu redor agora, basta observar.
Além dessas amarras no entendimento do folclore, os grandes centros urbanos podem nos dessensibilizar em perceber certos detalhes e até ressaltar maneiras de estereotipar regiões como norte e nordeste.
A VERDADEIRA FACE DO FOLCLORE É SOMBRIA?
Há uma intensa busca pela “verdade sombria do folclore brasileiro” que soa como uma fuga do conteúdo infantil, resultando em um tipo de “adolescência” do processo de valorização cultural que precisamos resolver.
Existem coisas assustadoras e tenebrosas nas narrativas da cultura brasileira? Sim, mas esse discurso é frequentemente usado como uma forma de negar e contrapor as “lendas infantilizadas”. Um tipo de argumento que levará tudo para um lado completamente oposto do gênero “infantil”, com uso de violência, terror, sangue, muitas vezes escorregando em grandes doses de demonização.
Não é à toa que se usa esse tipo de clickbait, são termos que causam sim um impacto e conversam emocionalmente com a nossa frustração com a falta de conteúdo para públicos mais velhos. A questão é: afirmar que o “verdadeiro” FOLCLORE é sombrio é tão falacioso quanto o FOLCLORE “ser infantil”. Lógico, estamos falando aqui do DISCURSO sobre o que o folclore “É”. Produções artísticas podem e devem ser feitas em todas as áreas e gêneros.
REELS: LENDAS SÃO CRIADAS PARA CAUSAR MEDO EM CRIANÇAS?
TEXTO APROFUNDANDO MAIS ESSA QUESTÃO.
MITOLOGIA NÃO É UM CONJUNTO DE MITOS?
Por definição, a palavra mitologia está de fato ligada a um conjunto de mitos de um determinado povo, porém o conceito dessa palavra não termina por aí. Mitologia é uma ciência cujo objetivo é o estudo dos mitos e as suas narrativas simbólicas do ponto de vista da filosofia e antropologia cultural.
Os mitos possuem ligações profundas e particulares com cada povo, estruturando um sentido lógico próprio por meio de simbologias que formam uma coluna central que se relaciona de maneira diferente em cada agrupamento humano.
Sendo assim, dizer que no Brasil temos uma mitologia organizada e em sintonia com o nosso povo é algo bastante equivocado pelos motivos que virão em seguida.
E O PANTEÃO DE DEUSES INDÍGENAS BRASILEIRO?
No geral, entendemos que mitologia grega e egípcia, por exemplo, não fazem parte da mesma estrutura narrativa e histórica, com desencadeamentos que misturem os seus deuses para criar um panteão unificado, certo? Deveríamos naturalizar o mesmo tipo de raciocínio para os mais de 300 povos indígenas brasileiros.
Há algum tempo na cultura pop nacional se espalha um grande desejo pela existência de um “panteão unificado de deuses brasileiros”, assim como ocorre nas culturas politeístas mais conhecidas, numa ânsia por se aproximar dessas narrativas que tanto inspiram produtos de mídia.
S
e existem 305 etnias indígenas diferentes no país (Senso 2022) e cada uma delas representa um povo com a sua cultura, sua língua (no caso, 274) e a sua forma de experienciar o mundo, cada uma delas deve possuir a sua própria forma de mitologia.
O termo “mitologia brasileira” é usado geralmente para forçar a criação de uma teogonia artificial, misturando as diversas mitologias de povos originários numa massificação que muitas vezes não representa a diversidade dos povos nem no âmbito ficcional. Sem contar que essa mistura acaba abrangendo outra área que é quase igualmente mal compreendida, o folclore.
POR QUE LÁ FORA FALAM DE MITOLOGIA E AQUI CHAMAMOS DE FOLCLORE?
Um enorme equívoco que ronda o senso comum brasileiro é a confusão sobre separar o folclore de mitologia e das culturas indígenas.
Pensamos que:
Folclore – Sabedoria que envolve expressões de um povo como cantigas, festas, superstições, gírias, comidas tradicionais e mitos e lendas (é nessa parte que a galera confunde e mistura tudo).
Mitologia – Ciência que estuda um conjunto narrativas simbólicas e metafóricas da experiência humana e a construção de uma visão do mundo por uma cultura num tempo determinado.
O folclore vive em constante transformação, sendo influenciado por diversas mitologias e possui referências de várias culturas como uma grande colcha de retalhos. Uma mitologia por si só possui uma construção de narrativa particular e tem menos influências externas.
Ou seja, os povos indígenas possuem diversas formas de folclore e mitologias próprias. As culturas indígenas influenciam o folclore como qualquer outra, no entanto, essas culturas não são uma subclasse do folclore, como fazem parecer.
MITOLOGIA É COMO CHAMAMOS A RELIGIÃO DO OUTRO?
Essa questão vem em forma de afirmação sendo viralizada na internet há alguns anos, em vezes ligada ao mitólogo Joseph Campbell (autor de O Herói de Mil Faces), mas essa afirmação vem descontextualizada.
“Entrevistador: Como você definiria a mitologia aqui?
Campbell: Minha definição favorita de mitologia: a religião das outras pessoas. Minha definição favorita de religião: a incompreensão da mitologia. A incompreensão consiste na interpretação dos símbolos mitológicos espirituais como se fossem fundamentalmente referências a acontecimentos históricos.” — O trecho é tirado do livro “Isto és Tu: Redimensionando a Metáfora Religiosa (2001)” onde está publicada uma entrevista dada a The New York Times Magazine em 8/02/1979.
O MITO NÃO É UMA FORMA DE MENTIRA?
Aqui trago um excelente trecho do livro “Isto és Tu” onde nas páginas iniciais ele tenta responder um apresentador de rádio em uma entrevista em que ele insistia em dizer que um mito é uma mentira.
“Não, um mito não é uma mentira. Toda uma mitologia é uma organização de imagens e narrativas simbólicas, metafóricas das possibilidades da experiência humana e da realização de uma determinada cultura num determinado momento” — Disse Campbell, que, após o entrevistador continuar na teimosia, o desafiou a lhe dar um exemplo de metáfora.
O entrevistador se sentiu intimidado, mas faltando poucos minutos para terminar o programa ele decidiu tentar: “Meu amigo John corre muito depressa. As pessoas dizem que ele corre como um cervo. Eis aí uma metáfora”.
Como os últimos segundos da entrevista se escoavam, Campbell respondeu: “Essa não é a metáfora: A metáfora é: John é um cervo”.
Após isso, Joseph Campbell discorre sobre o que pensa em relação à compreensão comum de metáfora: “Isso me fez refletir que a metade das pessoas do mundo pensa que as metáforas de suas tradições religiosas, por exemplo, são fatos. E a outra metade sustenta que não são, de modo algum, fatos. O resultado é que temos pessoas que se consideram crentes porque aceitam metáforas como fatos, e temos outros indivíduos que se classificam como ateus porque acham que as metáforas religiosas são mentiras.”